As estradas que sangram as florestas tropicais

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Como estradas matam culturas indígenas sob a justificativa do desenvolvimento

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Muitos são os estudos que mostram a influência das rodovias no desmatamento de florestas tropicais, mas poucos contam como tribos indígenas tem sua cultura e sua população dizimadas sob a justificativa de ampliar o transporte de cargas e pessoas.

Um trabalho publicado na revista Biological Conservation (Barber e colaboradores, 2014) mostrou que 95% do desmatamento da Amazônia ocorre até 5,5 quilômetros do eixo das rodovias existentes. Nesse mesmo sentido, os focos de incêndio ocorrem mais na faixa de 0 a 10 quilômetros da rodovia do que para o interior. Essas e outras publicações geram uma grande comoção na comunidade científica ambiental e eventualmente na população em geral.

Entre 1960 e 1970 o governo militar brasileiro estabeleceu como meta a ocupação da Amazônia levando, segundo eles, desenvolvimento social e econômico para a região. Entre as tantas frases de efeito, uma chama a atenção pelo nítido descaso com as populações indígenas. Se afirma que o Presidente Médici convidava “os homens sem terra do Brasil a ocuparem as terras sem homens da Amazônia”.

Nestes quase 50 anos da abertura de cicatrizes na Floresta Amazônica, muitas rodovias foram implantadas no todo ou em parte com o objetivo de “levar desenvolvimento” à região. As mais relevantes são a BR-364 (Cuiabá – Porto Velho); BR-319 (Porto Velho – Manaus); BR-163 (Cuiabá – Santarém); BR-010 (Belém – Brasília) e a BR-230 (Transamazônica).

 

Estradas e terras indígenas

A imagem abaixo foi obtida da dissertação de mestrado de Paula Dodde (2012). Neste mapa fica evidente que quase a totalidade das terras indígenas na Amazônia são entrecortadas por estradas e rodovias de diversas dimensões.

Mapa de localização das Terras Indígenas afetadas por rodovias implantadas, em implantação e planejadas | Paula Dodde | 2012

Alguns casos são notórios.

Transamazônica

A BR-230, mais conhecida como a Rodovia Transamazônica, sempre oscilou entre uma rodovia necessária à ocupação e desenvolvimento dos estados por onde cruza e a cicatriz em meio a maior floresta tropical do mundo.

Com mais de 45 anos, foi iniciada no governo do Presidente Médici, e planejada para ter mais de 8.000 quilômetros, teve 4.572 quilômetros concluídos. Posteriormente foi ampliada em mais de 700 quilômetros e atualmente é difícil precisar quanto está transitável. O site do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT) tem informações sobre as condições de rodovias.

Para os estados do Amazonas e do Pará as informações existentes mostram que mais de 90% do trecho é classificado como Atenção ou Cuidado. Neste sistema de informações, o sinal verde que indica “Boa Viagem” some entre os demais.

A relação da rodovia com povos indígenas sempre foi conturbada, e normalmente as questões se referem às politicas públicas, ou a falta destas. Existem muitas histórias, e nenhuma boa. Veja dois casos recentes:

  • Em 2013, um relatório da Comissão da Verdade mostrou que a no período da construção da BR-230, 29 grupos indígenas de 11 etnias sofreram severas atrocidades, sendo expostos ao trabalho escravo. Os Jiahui tiveram a população reduzida em 90% e os Tenharim em mais de 50%.
  • Da construção até os dias atuais a situação não se alterou. Em 2017, guerreiros Munduruku fecharam a BR por mais de uma semana e criaram um engarrafamento de mais de 40 km. Os pedidos eram, novamente, políticas públicas e demarcação de terras.

A BR-174

Apesar de possuir mais de 3.000 quilômetros e interligar quatro estados brasileiros à Venezuela, é mais conhecida como Rodovia Manaus – Boa Vista. Fato justificável por ser a única ligação de Roraima ao resto do Brasil. Sempre foi uma rodovia estratégica, conectando o país ao restante das Américas.

Há 48 anos atrás, em 26 de fevereiro de 1970, foi assinado o convênio entre o DNER e o 6° Batalhão de Engenharia e Construção (BEC) para se implantar a BR-174. Foram empregadas duas frentes de trabalho, a Norte e a Sul, e seu encontro ocorreu no dia 22 de dezembro de 1975, às 16 horas, onde hoje está o Km 362 da rodovia.

Inaugurada em 1977, a rodovia cruza mais de 130 quilômetros na área do povo Waimiri-Atroari.


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Waimiri Atroari.- uma etnia indígena em guerra com a estrada

Índios Waimiri-Atroari próximos de uma maloca | Foto: Jorge Peter /14-01-1977

A etnia Waimiri Atroari

Também conhecidos como Kiña (Gente, em tradução livre), os índios Waimiri-Atroari têm sua ocupação histórica onde hoje é o sul de Roraima e norte do Amazonas. Fazem parte da família linguística Karib, composta por cerca de 40 etnias distribuídas pela Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, além de outros no Brasil.

A etnia sempre sofreu com o contato de colonizadores, com forças militares, e oportunistas buscando riquezas. A população estimada inicialmente em 6.000 índios, depois foi recontada e estimada em 2.000 pessoas, em 1974 eram 1500, e em 1987 totalizavam somente 374 índios.

Foi neste ano, 1987, que se iniciou o Programa Waimiri-Atroari (PWA). Após 25 anos, em 2012, a população era de 1.584 pessoas, vivendo em 26 aldeias.

Os Kiñas e a BR-174

Em 1967 o povo Waimiri-Atroari habitava toda a região entre Manaus e o município de Caracaraí, em Roraima. Estavam inseridos na parte norte do vale do rio Urubu e inclui os rios Uatumã, Curiuaú, Camanaú, Alalaú (Amazonas) e os rios Jauapery e Anauá (Roraima).

O início das obras da BR-174, ou mesmo a fase de demarcação, deu origem ao grande massacre dos Waimiri-Atroari. As estratégias usadas foram várias, desde contratação de outras tribos (Wai-Wai, Tucano, Mundurucu, …), pacificadores e indianistas experientes em outros países e estados brasileiros e, finalmente, a força do exército.

Sim, muitos autores afirmam que a “guerra” aos Waimiri-Atroari chegou ao ponto do uso de bombas jogadas de aviões e helicópteros. O caso mais conhecido aconteceu em uma maloca durante uma festividade. Ao que parece o governo brasileiro pode ter feito uso de napalm, descrito por um sobrevivente como um pó que dava muito calor e que pouco depois as pessoas morriam.

Outra estratégia usada desde os primórdios da ocupação de territórios por colonizadores, foi a disseminação de doenças. Aparentemente, índios doentes de outros povos indígenas eram contratados para irem às aldeias. Como resultado, dezenas e até centenas de Kiñas morriam sem poderem se defender. Agora você entende a redução populacional ocorrida em 20 anos.

Hoje, apesar de constantes batalhas judiciais e governamentais, a BR 174, no trecho das terras dos Waimiri-Atroari, é fechada às 18:30h e reaberta às 6h do dia seguinte. Os índios justificam a ação para sua própria proteção e evitar atropelamentos de animais selvagens. Estes últimos são fontes de alimento e de inúmeras crenças.

 

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O Programa Waimiri-Atroari (PWA)

O PWA foi iniciado em 1987 com o objetivo de recuperar a cultura, a saúde e, pode se dizer, a dignidade do povo Kiña. O Programa foi subdividido em vários subprogramas, tais como: administrativo, saúde, educação, Documentação e memória, apoio a produção e meio ambiente. Pode ser considerado como um Programa de Gestão Ambiental de longo prazo e que visa o desenvolvimento sustentável e manutenção da cultura dos Kiñas.

O Programa de Meio Ambiente foi implantado em julho de 1997 com o objetivo de mitigar os impactos ambientais da BR-174.

O Plano de Proteção Ambiental (PPA) dos Waimiri-Atroari

O PPA foi idealizado com sete linhas de atuação:

  • Acompanhamento das atividades de manutenção da BR-174;
  • Fiscalização e vigilância para minimizar ações de predadores e poluidores;
  • Campanhas educativas e informativas dirigidas a transeuntes;
  • Coleta de lixo lançado na rodovia por usuários;
  • Fiscalização noturna na rodovia, somente liberada para casos específicos;
  • Monitoramento de animais selvagens atropelados;
  • Controle dos usuários da rodovia.

Monitoramento de fauna atropelada

O monitoramento de fauna atropelada dos Kiña foi realizado duas vezes por dia em 120 quilômetros de rodovia que corta as terras indígenas. Pela manhã em um sentido e no final da tarde no sentido oposto.

As informações existentes indicam que este trabalho foi realizado diariamente entre 1997 e 2012. Isso implica dizer que foram realizados mais de 1,3 milhões de quilômetros de monitoramento.

Planilhas de dados mostram a realização dos monitoramentos na maioria dos dias. De qualquer forma os números são impressionantes, independente do esforço.

Os dados apresentados abaixo se referem a esses 15 anos (1997 – 2012), mas os monitoramentos continuaram. Posso afirmar que até 2014 os monitoramentos foram realizados.

A maior parte da informação é sumarizada em grandes grupos. Em 15 anos de monitoramento foram encontrados 7.084 animais atropelados. Os mais afetados foram as cobras (N=2.171), os marsupiais (N=1.540) e os macacos (N=905).

Número de animais atropelados em diferentes classes

Os Rodentia e os Edentata, onde estão várias espécies importantes na dieta do Waimiris-Atroari (p. ex. paca, cutia e tatus) também foram afetadas. Os primeiros totalizaram 761 animais, enquanto apenas 174 edentatas estão na lista. Veados e antas, dois itens alimentares importantes, tiveram poucos registros, 7 e 3, respectivamente.

Os números de atropelamentos variaram muito entre os anos. Hoje é impossível se precisar se isso ocorreu por variação no esforço, treinamento da equipe ou variação efetiva nos atropelamentos.

Entre 1997, quando se obteve o menor número de registros, 36, até 2007, houveram variações anuais. Os anos de 1998, 2002 e 2003, registraram mais de 500 animais. Após 2007, com o asfaltamento, todos os anos tiveram mais de 500 registros.

Número de animais atropelados por ano

Dados do controle de tráfego mostram que, em média, 378 veículos cruzam as terras indígenas todos os dias. Os maiores números são encontrados de janeiro a abril.

 

 

A importância da preservação da fauna na cultura e na sobrevivência dos Waimiri-Atroari

O trabalho publicado por De Souza-Mazure e colaboradores (2000) mostra que algumas das espécies afetadas por atropelamento são a base da fonte de proteína da população indígena.

Antas, diferentes espécies de porcos-do-mato e alguns macacos representam 87% de todo o peso consumido de caça.

É interessante observar que os Waimiris-Atroari possuem hábitos distintos de outros grupos indígenas da mesma região. Alguns dados contrastantes são o consumo 10 vezes maior de anta, mais de três vezes o consumo de macaco-aranha e 10 vezes menos de macaco-prego. Obviamente estes dados podem apresentar um viés pela localização da aldeia monitorada e particularidades dos anos avaliados.

Para finalizar, um aspecto cultural relacionado a fauna dos Kiñas é a forte relação com os saguís-de-mãos-amarelas (Saguinus midas). Essa pequena espécie, com pouco mais de 500g, está entre as mais afetadas por atropelamento. O mestrado realizado por Fabiana Cerqueira de Sá (2016) e que segmentou os dados de atropelamento dos Waimiri-atroari, constatou que 4% do total de atropelamentos atingem a espécie.

Saguí-de mãos-amarelas (Saguinus midas)

Últimos acontecimentos

Desde sempre os governos federal e estaduais do Amazonas e Roraima atuaram para o fechamento noturno da BR-174 e de outras ações dos Kiña.

Entretanto, em 2017, o Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM), através da Ação Civil Pública (Processo n° 1001605-06.2017.401.3200) pediu a reparação dos danos causados aos índios.

No começo de fevereiro de 2018, após mais de 40 anos da conclusão das obras, a Justiça Federal do Amazonas reconheceu as violações praticadas aos Waimiri-Atroari.

A decisão completa pode ser lida se clicando aqui, mas os principais pontos foram:

a) Adotem as medidas necessárias para retificar, no prazo de 60 dias, a área objeto de homologação do Decreto n° 97.837/1989, de modo a afastar a exclusão prevista no art. 2°, parágrafo único, do trecho referente à BR-174 do território Waimiri-Atroari;

b) Abstenham-se imediatamente de adotar qualquer medida legislativa ou administrativa que tenha impacto sobre o território Waimiri-Atroari ou de realizar empreendimentos na área se não houver o consentimento prévio e vinculante do povo Waimiri-Atroari, nos termos do art. 6° da Convenção n° 169/OIT e como medida de reparação pelos danos causados àquele grupo;

c) Abstenham-se imediatamente de promover a militarização da política indigenista no território Waimiri-Atroari, observando concretamente as seguintes vedações: proibição de incursões militares na área sem o prévio consentimento do povo Waimiri-Atroari, a ser obtido nos termos do art. 6° da Convenção n° 169/OIT; vedação da condução de assuntos referentes a direitos indígenas do povo Waimiri-Atroari por agentes e órgãos militares.

Em sede de pedido de tutela de evidência requer que a União e a FUNAI, sob pena de multa diária:

a) Assegurem, no prazo de 60 dias, a preservação dos locais sagrados, cemitérios e espaços territoriais imprescindíveis de pertencimento ao povo que sejam impactados pela rodovia, mediante indicação e sinalização, observado o art. 6° da Convenção 169 OIT;

b) Promovam, no prazo de 60 dias, a reunião e sistematização no Arquivo Nacional, de toda a documentação pertinente à apuração das graves violações de direitos humanos cometidas contra o povo Kinja, visando a ampla divulgação ao público, bem como a abertura de todos os arquivos civis e militares que direta ou indiretamente tratem das atividades desenvolvidas por quaisquer das forças militares durante a construção da rodovia BR-174, e a abertura dos arquivos do 6° BEC e do 1° BIS referente ao período de 1967-1977.

E ainda há um pedido de indenização de 50 milhões.

 

Uma reflexão final

As aulas de história, quando nos contavam sobre barbáries realizadas por exploradores portugueses, espanhóis, holandeses, … às culturas Americanas, nos pareciam ações distantes, sem precedentes atuais. Contudo, o que continuamos vendo são interesses econômicos sobrepujando questões culturais, sociais e ambientais.

Devemos ter em mente que nenhum desenvolvimento (social, econômico, ambiental, cultural) pode ser alicerçado sobre o detrimento (social, econômico, ambiental, cultural) de outro grupo. Hoje está no nosso cotidiano a discussão de cotas para grupos minoritários, entre eles os índios. Agora, é incrível que pouco se ouça falar de atrocidades culturais e ambientais como as sofridas pelos povos indígenas do Brasil. Veja que neste caso, estes grupos não estão lutando por nada mais que seu direito de vida, de subsistência, de manutenção da sua população e da sua cultura.

 

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