Passagens superiores vegetadas para animais.- do sonho à realidade

Passagens superiores vegetadas para animais.- do sonho à realidade

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Passagens superiores vegetadas são o sonho de consumo de ecólogos de estradas, gestores de unidades de conservação e conservacionistas em geral. Já os empreendedores, empreiteiras e concessionárias de rodovias têm urticárias quando essa obra é cogitada.

Basicamente, a passagem superior se assemelha a um viaduto que possui uma camada de terra permanente e que tem vegetação, com o intuito de gerar conectividade entre os dois lados de um fragmento cortado por uma rodovia . Ela é tão controversa que nem mesmo para o nome há um consenso. Existem pessoas que denominam de viaduto vegetado, outros de passagem superior vegetada, em alguns casos somente passagem superior e por aí vai. Em inglês, alguns dos termos são overpass ou wildlife overpass.


Passagens superiores pelo mundo

Essas passagens já foram amplamente construídas na Europa, nos EUA e no Canadá. Também existem na Argentina, Austrália e até mesmo o Brasil. As passagens variam muito em tamanho, podendo ter de poucos metros a mais 200 metros de largura. O solo desses viadutos podem ter profundidade de 0,5 a 1,8 metros, com o crescimento de vegetação herbácea, arbustos e pequenas árvores.

O caso de Banff, Canadá

Talvez o caso mais emblemático seja o conjunto de passagens instaladas no Parque Nacional de Banff no Canadá. O Parque é cortado em 82 km pela Rodovia Trans-Canadá, que até 1981 era uma rodovia de duas pistas. Neste ano, devido o aumento de tráfego o governo canadense decidiu iniciar a duplicação, ampliando para quatro pistas.

No trecho foram projetadas passagens subterrâneas e superiores, sendo que em 2014 estavam implantadas 44 passagens, sendo seis superiores. O conjunto de medidas, integradas por cercas direcionadoras, reduziu as colisões em mais de 80% quando consideradas todas as espécies afetadas. Já os alces e cervos tiveram uma redução de 96%. É importante lembrar que as medidas priorizam espécies de maior porte.

Entre 1996 e  2012, 11 espécies de grandes mamíferos foram registradas usando as passagens superiores mais de 150.000 vezes. Isso inclui ursos pardos e pretos, lobos, coiotes, pumas, alces, veados, carneiros selvagens e, mais recentemente, linces.

Passagens superiores no Brasil

O Brasil é o país do “eu fiz primeiro” e existem vários “pais” para as primeiras passagens superiores aqui.

Em 2015 a Concessionária que administra a Rodovia dos Tamoios (SP) divulgou amplamente que estava implantando a “primeira passagem” vegetada do Brasil. No link no final do post é possível observar o início das obras de uma estrutura, denominada como Passagem Aérea de Fauna. Até onde eu sei a obra não foi finalizada. Tentei obter informações junto a Concessionária e não tive retorno. Se você tem alguma informação sobre esse viaduto, será incrível nos contar no espaço destinado aos comentários.

Já em 2017 houve uma grande divulgação de uma nova “primeira passagem” de fauna, mas desta vez sobre uma ferrovia. No caso não é uma, mas duas passagens, construídas pela Vale sobre a ferrovia que corta a Floresta Nacional de Carajás, no estado do Pará. Tenho a impressão que esses são realmente os primeiros viadutos vegetados construídos no Brasil.

Em outubro de 2018 eu tive a oportunidade de visitar essa passagem. É uma estrutura de uns 20 metros de largura na porção central e recoberta com uma vegetação herbácea com até dois metros de altura. Foi observado uma grande quantidade de fezes de anta, e foi comentado que outros grandes mamíferos fazem uso da passagem.

Passagem superior vegetada sobre a ferrovia da Vale, Pará

Pessoalmente achei a cerca de direcionamento muito curta, tendo uns 50 ou 70 metros. Já existem alguns dados coletados e espero que a empresa divulgue-os em breve.

Finalmente, a terceira “primeira passagem” surge depois de uns quatro anos de muitos debates técnicos, científicos, financeiros e políticos. Estou falando da passagem vegetada para os mico-leões-dourados na Reserva Biológica de Poço das Antas, RJ, vinculada a Autopista Fluminense (BR-101).

Minha primeira participação nesse empreendimento aconteceu no início de 2014, logo após o Road Ecology Brazil. Na ocasião, eu fui convidado para participar de um workshop promovido pela Associação Mico Leão Dourado. Foram uns três dias de debates, visitas a campo, propostas e definições.

Neste intervalo de tempo houveram muitas idas e vindas. Os principais atores foram a Autopista Fluminense, Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Associação, Universidades e Ministério Público. E em 2018 foi divulgada a notícia de que a passagem estava aprovada e será construída. No mês de novembro foi dado início às obras e agora só resta saber se não empacará no meio do caminho, como é normal em obras rodoviárias.

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Minhas percepções

Em 20 anos de pesquisas em ecologia de estradas eu também já tive meus momentos de desejar passagens vegetadas para estradas que trabalhei. Contudo, mais recentemente, tenho me tornado muito mais cauteloso sobre este tipo de medida. Ao contrário do que possa parecer eu continuo acreditando que passagens superiores são estratégias incríveis para proteção da nossa biodiversidade e da própria vida humana, contudo elas não podem ser propostas de forma leviana e sem robustos estudos.

Uma historinha

Para contextualizar o motivo desta cautela tenho de contar uma história. Alguns anos atrás fui convidado pelo Ministério Público para visitar uma unidade de conservação e avaliar medidas de mitigação implantadas. Chegando lá me deparei com um conjunto de medidas extremamente mal planejadas, tanto estruturalmente quanto pelos locais onde estava instaladas. Algumas semanas depois tive a oportunidade de conversar com os analistas que haviam proposto as medidas e questionei porque haviam sido requeridas.

Para minha surpresa a resposta foi, “pelo princípio da precaução”……. ahhh !!?!??

A explicação que se seguiu permitiu que eu entendesse, mas não justificava. Foi dito que o pedido das medidas foi para evitar que “se” algum animal morresse ninguém dissesse que o licenciamento tinha sido conivente com o empreendedor.

Ou seja, uma série de medidas de mitigação foram implantadas, com um elevado custo e sem a devida precisão de localização e justificativa.

E as passagens superiores ?

Conto essa história para traçar alguns paralelos com as passagens superiores.

1.- Em comparação com outras medidas elas são dezenas ou centenas de vezes mais caras. Obviamente que há uma infinidade de parâmetros que influenciam os valores, mas elas podem chegar a 40 milhões de reais;

2.- A implantação de uma passagem superior sempre requer um planejamento e gestão de território para que as áreas naturais de cada lado da rodovia/ferrovia continuem existindo. Imagine o caso da implantação de uma passagem superior de 30 milhões onde em poucos anos as matas fossem suprimidas. Restaria uma linda passarela vegetada sobre a rodovia, mas sem qualquer funcionalidade ecológica;

3.- Uma passagem tem uma largura específica e deve ser instalada no melhor ponto onde a espécie que se propõe proteger possa passar. A definição deste ponto não é fácil e normalmente requer muitas pesquisas prévias com métodos como armadilhas fotográficas e/ou rádio-telemetria (há um capítulo sobre este tema no meu novo livro, conheça clicando aqui). Um bom exemplo deste conhecimento foi a definição do ponto da passagem para os mico leões dourados. Neste caso a equipe de pesquisadores da Associação possui muitos anos de monitoramento da espécie, conhecendo os pontos que os bandos se aproximam da rodovia;

4.- Eu sempre afirmo que passagens de fauna, sejam inferiores ou superiores, devem ser focadas em uma ou poucas espécies. É claro que uma passagem superior vegetada propicia um ambiente favorável para muitas espécies, sobretudo para pequenos vertebrados, mas não podemos acreditar que todas farão uso dela.
Há uma “curva de aprendizado” para os animais começarem a usar as travessias. Os resultados obtidos em Banff mostraram que animais cautelosos, como ursos pardos e lobos, podem levar até cinco anos para se sentirem seguros e usarem a passagem. Os alces foram as primeiras espécies de grande porte a utilizarem as passagens;

5.- A efetividade das passagens superiores está associada ao número de espécies e a quantidade de indivíduos de cada espécie que utilizam a estrutura. Como dito anteriormente as passagens são estreitas quando comparadas com a extensão da rodovia, sempre devendo serem complementadas com cercas direcionadoras. Estas estruturas formam um verdadeiro funil de captura de animais, e ampliam muito a faixa de proteção da passagem;

6.- Os casos brasileiros estão diretamente relacionados com concessionárias de rodovia, enquanto as rodovias sob gestão estadual e federal continuam a se eximir de suas responsabilidades ambientais. A questão é que as exigências para construção destas estruturas são feitas após a assinatura dos contratos de concessão, ou seja, não estão previstas no projeto inicial. Sempre que uma obra não planejada é requisitada para a concessionária de rodovia há uma discussão para redistribuição dos custos para os usuários através do pedágio. Se os estudos prévios já considerassem os viadutos vegetados, os valores serão incorporados na planilha de custos inicial e não implicarão em redistribuição de valores para os usuários.

Pra finalizar

Resumindo tudo isso. Passagens superiores vegetadas são estratégias importantes e extremamente efetivas para a redução dos efeitos da fragmentação gerada por rodovias e ferrovias. Contudo, devido ao seu custo e a constante ausência de informação do deslocamento das espécies foco, a proposição deste tipo de passagem deve ser muito bem respaldada.
A tomada de decisão sobre implantar ou não este tipo de medida de mitigação não pode estar embasada em paixão ou análises simplistas, mas em criteriosa coleta de dados e análise ecológica, econômica e social.

Mas e você, o que pensa sobre as passagens vegetadas? Adorarei saber sua opinião.

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