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A perda de biodiversidade por acidentes com veículos
As 5 verdades que o governo e as concessionárias nunca te contaram
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Nos últimos 4 anos um número tem impressionado todos que trabalham com conservação da biodiversidade. Um número que supera o de outros impactos diretos como o tráfego e a caça, em quase 10 vezes.
Este número é a estimativa de que 475 milhões de animais selvagens são atropelados todos os anos no Brasil.
Parece inconcebível que diariamente mais de 1 milhão de animais sejam mortos desta forma. Pior, são de 15 a 17 animais a cada segundo.
E este número só se refere aos vertebrados terrestres, tais como cobras, sapos, macacos, cachorros e gatos do mato, capivaras e muitas espécies ameaçadas de extinção, como o tamanduá bandeira, onça parda, lobo guará, …. e não incluem todos os insetos e outros grupos de invertebrados.
Além do claro efeito aos animais, há questões sociais e econômicas importantes quando falamos de atropelamento de animais selvagens. Imagine os danos causados a automóveis e caminhões devido uma colisão com uma capivara ou mesmo um cachorro do mato. Se agregarmos ainda as mortes de motoristas e passageiros causadas devido estes acidentes, teremos milhões de reais sendo gastos todos os anos.
Devido todos esses fatos, seria impossível lançar o B.A.B. e não falar sobre este assunto. Com certeza ele será tema de vários outros posts, mas aqui explicarei como se chegou ao número total de animais selvagens atropelados.
Antes de mais nada é importante falar que os cálculos foram revisados inúmeras várias vezes, sempre buscando um erro que mostrasse que este número é muito menor. Não achei nada e pior, continuo achando que a estimativa está subestimada devido a todos os erros amostrais dos monitoramentos de fauna atropelada. Mas isso é assunto para um post específico.
Como surgiu a ideia de fazer a estimativa ?
Tudo começou em 2012, e na verdade a estimativa surgiu devido dois pontos, um mais trágico/cômico e outro mais técnico.
A questão mais cômica é porque só iniciei as análises durante um período de vários dias que ficamos sem internet na universidade. Eu já possuía a maior parte das informações que precisava e foi o suficiente para aguçar minha curiosidade.
A questão técnica, é que sempre me perguntava o quanto eu estava auxiliando na conservação da biodiversidade brasileira. Realizava estudos e monitoramentos de pequena extensão, mas não conhecia a magnitude do efeito em grande escala.
Estes dois fatos foram determinantes para chegar aos números que apresentarei agora.
475 milhões de acidentes
Seleção dos artigos científicos
O primeiro trabalho foi reunir os artigos científicos que, na época, permitiram que se calculasse a taxa de atropelamento dos animais. Não haviam muitos artigos, e foram reunidos 14. Eram poucos, mas os demais trabalhos só apresentavam listas de espécies e número de animais.
A taxa geral de atropelamento
O próximo passo foi obter a taxa média de atropelamento para diferentes grupos de animais. Foi impossível calcular a taxa em nível de espécie, até porque o número de artigos era pequeno e havia uma grande variação de espécies afetadas.
A opção foi criar grandes classes, ficando definidos pequenos, médios e grandes vertebrados. E aqui é necessário dizer que a quase totalidade dos artigos que são publicados no Brasil, erram muito nos dados de atropelamento de pequenos vertebrados.
Pense comigo, você está fazendo um monitoramento em um carro a mais de 40 km/h, ou normalmente muito mais, e anota tanto anfíbios quanto animais de médio e grande porte. Na prática, o que se está afirmando é que a chance de ver um anfíbio e uma anta é a mesma, e assim calculam as taxas de atropelamento.
Na época, o único artigo confiável para anfíbios foi do Coelho e colaboradores (2012). Este artigo, realizado a pé, em um trecho de rodovia do norte do Rio Grande do Sul, encontrou a incrível taxa de atropelamentos 24,7 anfíbios/km/dia. Só para efeito de comparação, se esta taxa fosse extrapolada para os 220.000 quilômetros de rodovias pavimentadas no Brasil, resultaria em mais de 1,98 bilhões de anfíbios mortos nas estradas brasileiras todos os anos.
Só para lembrar, esse número se refere apenas aos anfíbios. Ainda existem os pequenos mamíferos (p. ex. roedores), pequenas aves, pequenos lagartos e cobras, e assim vai. Agora você já está entendendo o tamanho do problema.
O mais incrível é que, nos últimos anos temos obtidos dados de estradas não pavimentadas, com poucos metros de largura, e o número de atropelamentos de pequenos animais é bem expressivo. Claro que é menor que nas estradas pavimentadas, mas se lembrarmos que existem quase 1,5 milhões de estradas não pavimentadas pelo país, você terá um total de mortes impressionante.
Bom, claro que não usei essa taxa de atropelamento, ponderei o valor com outros artigos mesmo sabendo que a maioria das amostragens seriam subestimadas para os pequenos vertebrados.Extrapolando para o Brasil
Calculadas as taxas gerais, chegou o momento de extrapolarmos para a malha viária brasileira. Tomei por base os dados disponibilizado pelo DNIT, o órgão brasileiro que implanta grande parte das nossas rodovias e que sumariza anualmente a quilometragem de cada tipo de rodovias e estradas no território brasileiro.
De 2012 até o presente a nossa malha não mudou tanto e possui cerca de 1,7 milhões de quilômetros de extensão. Claro que a mesma taxa de atropelamento calculada para uma rodovia pavimentada não poderia ser utilizada para uma estrada de terra. Neste caso foi necessário um exercício de extrapolação baseado em vários artigos internacionais. Mesmo sabendo que esses artigos foram produzidos em países com características ecológicas distintas das brasileiras, era a única opção que havia, sobretudo para as estradas de terra.
Recaptulando, primeiro foram calculadas taxas de atropelamentos para pequenos, médios e grandes vertebrados em rodovias pavimentadas federais. Com base nestes valores iniciais, foram definidas taxas diferenciadas para cada tipo de estrada considerando sua esfera administrativa (Federal, Estadual ou Municipal) e pavimento (pavimentada e não pavimentada).
Só para exemplificar, foi utilizado um coeficiente de correção de forma que uma estrada de terra municipal tivesse uma taxa de atropelamento de 18% em relação a uma rodovia federal pavimentada de duas pistas.
Definidas as taxas para cada tipo de estrada, o valor foi multiplicado pela quilometragem informada pelo DNIT e se obteve a estimativa do número de animais mortos por veículos em cada estado e para todo o Brasil.
Alguns (ou muitos) afirmarão que somente foram utilizadas as médias, sem considerar variações sazonais, amplitudes para diferentes regiões do Brasil, que cada bioma possui sua biodiversidade impactada de forma diferente, e muitos outros argumentos totalmente plausíveis e coerentes. Entretanto essa análises não eram possíveis de serem adequadamente avaliadas na época devido existirem poucos artigos científicos.
A ecologia de estradas teve uma evolução impressionante nos últimos cinco anos. Se avaliarmos o número e a qualidade dos artigos publicados nessa meia década, houve um aumento significativo. Mais que a Ecologia de Estradas, mas a Ecologia do Transporte, está em seu melhor momento no Brasil.
Padronização pelo número de veículos
Antes de matar a curiosidade e mostrar os dados, preciso explicar outra extrapolação realizada. Criei a hipótese de que onde há mais veículos, há mais atropelamento. Para um grande número de espécies este fato é verdade, enquanto para outras não, mas como seria uma análise complementar, testei possíveis mudanças nos números. E elas aconteceram sim.
As mudanças não foram significativas no número total, mas causaram mudanças no ranking dos estados que mais impactam nossa biodiversidade. Creio que dois exemplos representam bem essa análise.
O Rio de Janeiro, proporcionalmente possui uma área pequena se comparada com outros estados brasileiros, mas tem um grande número de veículos. Neste caso o Rio de Janeiro passou de 17° lugar para o 4° lugar no ranking dos estados.
Entretanto, ainda mais impressionante, foi o Distrito Federal. Claro que o número de atropelamentos lá é infinitamente menor que nos estados, mas ele possui 8,8 vezes mais veículos que a média nacional. Eu usei esses valores para ponderar correções em cada estado.
E agora, alguns dos resultados mais detalhados da estimativa de 475 milhões. Eu nunca tinha postado esses resultados, então esse é a maior novidade deste post.
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475 milhões de animais selvagens atropelados por ano
A partir da tabela abaixo podemos tirar uma série de conclusões interessantes.
Regiões brasileiras
A região Sudeste representa mais de 56% do total de mortes por atropelamento para a biodiversidade brasileira. É provável que análises futuras, que considerem dados obtidos em cada região, mostrem algumas variações no porte dos animais. Um exemplo marcante deverá ser os animais de grande porte para a região Centro-Oeste. Está região possui uma alta riqueza de espécies de animais como o tamanduá-bandeira, anta, capivaras, entre outras. Você pode ler um artigo científico publicado para essa região do Brasil clicando aqui.
Mortalidade em cada grupo
Os pequenos vertebrados, representados por todos os anfíbios, roedores, pequenas aves, a maioria da cobras e lagartos, e muitos outras espécies, são as mais afetadas, representando 90% de todos os animais mortos.
Esse é o motivo das pessoas terem dúvidas sobre os 475 milhões de mortes anuais. Trafegamos pelas estradas em velocidades elevadas, que impedem de vermos pequenos animais vivos ou mortos. Outro fato é que um pequeno sapo rapidamente será confundindo com a própria estrada pelo efeito das rodas de poucos carros que passarem sobre ele.
Provavelmente, em um futuro próximo, as novas pesquisas mostrarão que o número destes animais é muito maior do que acreditamos hoje. Fica aqui o desafio para os pesquisadores buscarem melhorar os métodos de monitoramento para esse grupo, tão pouco representado nas pesquisas de ecologia de estradas.
Já os grandes animais, aqueles que mais chamam a atenção quando viajamos, são menos de 0,5% do total, representando 2 milhões de animais. Estão neste número o cachorro do mato, gatos do mato, lontras, tamanduás, lobos guará, capivaras, antas, onça parda e onça pintada e muitas outras espécies. A grande maioria, devido seu tamanho e suas características biológicas, estão ameaçadas de extinção.
Estradas pavimentadas e não pavimentadas
O Brasil é um país de estradas não pavimentadas, com quase 1,5 milhões de quilômetros, o número de animais mortos nestas estradas é quase igual ao das rodovias pavimentadas. Claro que proporcionalmente as estradas pavimentadas atropelam mais, mas em números reais a diferença é pequena.
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Infográfico
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Publicações semelhantes em outros países
Um trabalho da Espanha e outro dos Estados Unidos reforçam a possibilidade dos 475 milhões de animais selvagens serem mortos por atropelamento.
O artigo espanhol (Ruiz-Capillas et al., 2015) estimou o número de roedores mortos por atropelamento por ano.
Os autores encontraram uma taxa de 0,65 animais/km/dia. Se extrapolarmos esta taxa para as rodovias pavimentadas brasileiras, temos o incrível número de 52 milhões de roedores. Ainda cabe lembrar que o Brasil possui uma diversidade de espécies de roedores muito maior que a encontrada na Espanha e que muitos roedores são mortos nas nossas estradas não pavimentadas.
Acesse outras informações deste artigo – Ruiz-Capillas et al., 2015.
Loss et al. (2014) afirmam que entre 89 e 340 milhões de aves são mortas todos os anos nas rodovias dos Estados Unidos.
Os autores comentam um ponto importante quando afirmam que essa grande amplitude se deve a diferença nos métodos de amostragem. Tenho comentado este fato em muitos momentos e certamente teremos alguns posts sobre esse assunto no futuro.
Acesse outras informações deste artigo – Loss et al., 2014
Todos nós somos responsáveis
É certo que cada um de nós é responsável por essa mortalidade impressionante.
Mesmo que você não dirija, você consome bens que são transportados por rodovias e ferrovias. Ou seja, mesmo indiretamente você está contribuindo para esse impacto.
Precisamos ampliar cada vez mais a divulgação destes números, só assim fortaleceremos outras ações junto a órgãos governamentais, empresas, concessionárias de rodovias, entre outros. Comece aqui, compartilhe este post nas suas redes sociais.
Se ainda não se cadastrou no B.A.B., faça agora. Deixe seu email aqui e fique informad@ de todas as ações que desenvolvemos. Saiba como auxiliar e se envolver.
Mídia
Essa estimativa já foi divulgada mais de 500 vezes nos últimos 5 anos. Abaixo alguns links em televisão, revistas e na web.
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Olá, professor!
Primeiramente parabéns pela iniciativa na divulgação científica. O conteúdo do blog é excelente.
Em relação ao texto, estou assustado com os valores e ainda mais com sua afirmação de que provavelmente eles estão subestimados. São dados alarmantes!
Enquanto lia o texto pensei constantemente em algo que poderíamos fazer, alguma solução a curto prazo externa a esfera pública e às ações governamentais, e não consegui. Existem práticas objetivas que os motoristas/cidadãos/sociedade civil podem adotar e difundir, em contraposição a normalmente demoradas atitudes governamentais, que poderiam resultar em redução dos valores?
Também fiquei pensando sobre os atropelamentos de animais domésticos como cachorros e bois, que imagino tão expressivos quanto o de animais silvestres. Existem dados a respeito?
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Olá Cleber, obrigado por suas palavras.
Existem várias ações em andamento sim, vou escrever sobre isso em breve. Temos várias propostas de leis em andamento, grupos de pesquisa trabalhando em vários segmentos, grande número de pessoas engajadas.
Temos o Sistema Urubu, com 22 mil usuários coletando dados em todo o Brasil, e isso tem contribuído muito para geração de conhecimento e pressão aos órgãos públicos.
Claro que podemos fazer muito mais e estamos buscando parceiros para engajarmos cada dia mais nas nossas ações.
Sobre os domésticos, sim, os números são assustadores. Vou botar isso na lista de posts para contar em breve.
Abraços,
AB
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E agora, qual sua opinião sobre esse número enorme? Está convencid@ de que é realmente possível ?