Continue escondendo seus erros…

Continue escondendo seus erros…

Tempo de leitura: 6 minutos

… e ajude a acabar com a nossa biodiversidade!!!

Pois é, esse é um post que você não quer ler. É muito confortável não pensar no monte de besteiras que realizamos todos os dias em nossos monitoramentos e análises de dados de impactos ambientais de rodovias e ferrovias.

Talvez seja confortável porque a grande maioria das pessoas que analisam seus relatórios também perpetuam os métodos e as mentiras que rotineiramente escrevemos no papel.

Entretanto o mundo está mudando e as empresas querem obter resultados factíveis e comparáveis no espaço e no tempo, para assim poder demonstrar que suas ações de conservação são efetivas e que as rodovias/ferrovias estão conseguindo proteger nossa fauna.

Todos estão observando! Sociedade, acionistas, órgãos ambientais, investidores, agências reguladoras, certificadoras e sabe lá quem mais.

Eu pretendo escrever vários posts sobre erros amostrais e analíticos que habitualmente empregamos nos estudos de impactos ambientais de rodovias e ferrovias à fauna. Neste primeiro eu quero falar sobre o mais óbvio e mais renegado dos problemas, a nossa incapacidade de obter uma detecção total.

A realidade

Em praticamente todos os estudos que realizamos, é impossível assegurar que todos os animais das unidades amostradas sejam detectados. A contagem de todos os indivíduos de uma população sem erros ou omissões é denominada de censo. Censos são raros e não devemos, normalmente, fingir que estamos a realizando contagens completas. Tipicamente, não só não amostramos toda a área de estudo, como também nas áreas que amostramos falhamos absolutamente em alguma fração dos animais presentes. Essa fração detectada é denominada de β.

Infelizmente, muitos projetos de conservação ignoram a questão da detecção incompleta de animais em protocolos de amostragem. Outros assumem que a probabilidade de detecção é homogênea no espaço e no tempo, e que amostragens realizadas em áreas ou momentos distintos são totalmente comparáveis. Finalmente, há aqueles que acreditam que podem corrigir os dados com métodos estatísticos e perdem meses ou anos de coletas por não considerar o efeito da detecção. Se as taxas de detecção forem heterogêneas, pode ser impossível comparar duas amostras realizadas em pontos diferentes do espaço, a menos que sejam consideradas as taxas de detecção.

Fatores que influenciam a detecção

Aqui a lista é inumerável e totalmente dependente da(s) espécie(s) em estudo. Você pode ter variação na probabilidade de detecção em função da equipe, do tipo de isca, da época do ano, da presença ou ausência de precipitação, da velocidade de deslocamento, do tipo de pista da rodovia e por aí vai.

Um dos mais básicos é o tamanho do animal que você está monitorando. É por isso que eu friso tanto a questão da distinção de procedimentos amostrais para animais de pequeno, médio e grande porte. Querer unir tudo em um única análise é a maior balela dos protocolos de monitoramento de fauna atropelada.

Responda rápido

Você está fazendo monitoramento de atropelamento de fauna em 100km de rodovia e ao final do trecho você contabilizou:

  • 10 capivaras
  • 4 saguis
  • 4 sapos-cururu

Quantas capivaras você acredita que estavam atropeladas neste trecho (considere apenas os animais sobre a pista e o acostamento)?

Quantos saguis? E quantos sapos?

Se você repetiu os valores anteriores sugiro que tire um ou dois dias da sua vida e percorra trechos a pé para fazer a comparação.

Eu responderia algo como, 10 capivaras, entre 6 e 8 saguis e 70 ou 80 sapos, este último sendo bem conservador.

Em uma análise rápida, alguns chamam de ingênua (naive), poderíamos afirmar que a taxa de detecção (β) seria:

  • β.capivara = 1
  • β.sagui = 0,66 a 0,5
  • β.sapos = 0,057 a 0,05

Agora, como você pode comparar sapos com capivaras se há uma probabilidade de detecção tão diferente para cada espécie. NÃO PODE.

Mas a grande maioria dos relatórios, dissertações, teses e artigos continuam fazendo.

Pense comigo

O fato de você registrar um animal em uma amostragem é consequência de dois processos: 1) a ocorrência do animal na sua área de amostragem e 2) você “conseguir registrar” o animal na área. Enquanto um registo de ocorrência (“presença”) informa que há um ou mais indivíduos no local, a ausência de registo é ambígua: o animal pode efetivamente estar ausente, ou pode estar presente, e não ter sido detectado ou não estar detectável.

Assim, os registos de ocorrência têm um valor limitado, a menos que as taxas de detecção possam ser estimadas. Em especial, não faz sentido comparar os registos de distribuição ou de ocorrência no espaço ou no tempo sem considerar uma detecção potencialmente heterogênea.

Não me deseje mal

Detestamos quando nos apontam falhas em nossos estudos de campo e, consequentemente, nos dados que analisamos para publicarmos nossos artigos e conservarmos nossas espécies.

Nem de longe estou sugerindo que seus registros sejam inúteis. Pelo contrário, espero apenas que tenha em mente os potenciais problemas. Ao se debruçar sobre este novo mundo entenderá a importância da estimação do β e perceberá que sua tomada de decisão será mais assertiva.

Imagine você concluir que um determinado trecho de rodovia não requer a instalação de uma medida de mitigação contra o atropelamento porque suas amostragens não consideram o efeito da temperatura na probabilidade de detecção de anfíbios. Após se investir algumas dezenas de milhares de reais o empreendedor é cobrado pelos órgãos ambientais pela morte de milhares de animais que poderiam ter sido inferidos se a detecção tivesse sido incorporada nas análises.

Próximos passos

Se você está minimamente convencido da importância de incluir a variação da probabilidade de detecção nos meus estudos, como avançar nos estudos?

Minha sugestão é ler e estudar análises de ocupação (Occupancy analysis). Só para deixar o gostinho para outros posts, a análise de ocupação evoluiu demais nos últimos anos e hoje ela também permite estimativas de abundância. Papo para outra hora.

Existem vários artigos, inclusive de ecologia de estradas que abordam estes conceitos, mas existem dois livros que eu acho fantásticos:

Quantitative Conservation of Vertebrates (2009). Michael J. Conroy e John P. Carroll

Occupancy Estimation and Modeling | 2nd Edition | (2017). MacKenzie et al.

Onde obter mais informação?

Se você deseja saber mais sobre este ou outros assuntos relacionados a infraestrutura viária e biodiversidade sugiro busque outros posts ou mesmos os textos técnico/científicos que compartilho aqui no BAB.

Caso você tenha interesse em conhecer mais sobre métodos de estudos relacionados à infraestrutura viária e biodiversidade sugiro a leitura do meu livros. Saiba mais como adquirí-los clicando aqui

Infraestrutura Viária & Biodiversidade (2018)