Atropelar pouco e impactar muito

Atropelar pouco e impactar muito

Tempo de leitura: 5 minutos

Conhecer os hotspots de atropelamento é o suficiente para estabelecer ações de mitigação. Neste post eu mostro que esta afirmação é um grande equívoco.

Consenso geral

Você sabe como muitos estudos de impactos de infraestrutura viária são concluídos e apresentados aos órgãos ambientais?

Uma empresa de consultoria é contratada, passa meses realizando monitoramentos de estrada e coletando dados de animais atropelados. A maioria dos termos de referência pedem quatro campanhas (que não é nada), mas não detalham a forma como o dado deve ser analisado e apresentado. Normalmente pedem que identifiquem as áreas de agregação, os tais hotspots de atropelamento, mas novamente não indicam como deve ser a análise dos dados.

Assim, o relatório final entrega uma análise conjunta, reunindo todos os vertebrados. Talvez, em alguns casos, os dados sejam segmentados para cada classe faunística. 

O resultado óbvio, mas reiteradamente visto em estudos de impacto de infraestrutura viária à biodiversidade, identifica os hotspots nas áreas onde há maior número de atropelamentos de espécies abundantes e pouco vulneráveis.

Imagine o seguinte exemplo, em um ano de monitoramento você tem 60 capivaras e 4 gatos-do-mato-grande atropelados. Se achar elevado 60 capivaras, experimente dirigir na BR 471 que cruza a Estação Ecológica do Taim – RS (Acesse o post que falo da ESEC Taim). Ao aplicar a análise de Ripley, famosa para identificar áreas de agregação, adivinhe onde os hotspots serão identificados?

Capivara atropelada na BR 471 – Rio Grande do Sul

Neste ponto devemos tomar a seguinte decisão, proteger a capivara com alta taxa de mortalidade, grande risco para os usuários da rodovia, baixíssimo risco de conservação, taxas reprodutivas elevadas, …. ou proteger uma espécie com baixa reposição, vulnerabilidade elevada, baixa abundância, ….?

O que a ciência mostra?

Um artigo recém publicado pela revista Frontiers in Ecology and the Environment, intitulado “Roadkill risk and population vulnerability in European birds and mammals” (Grilo et al. 2020) aprofunda essa análise para 423 espécies de aves e 212 de mamíferos da Europa. O estudo afirma que conhecer as taxas de atropelamento é importante, mas é fundamental avaliar a perda dos indivíduos na persistência da população a longo prazo.

Explicando melhor: no exemplo da capivara e do gato-do-mato é possível que a perda de 4 indivíduos de uma população de felino seja mais impactante para a conservação da espécie do que a morte das 60 capivaras.

Voltando ao artigo, foi estimada a mortalidade anual de 194 milhões de aves e 29 milhões de mamíferos nas estradas européias. Como que estas estimativas são realizadas? Foram analisados 90 trabalhos distribuídos por 24 países, onde as taxas de atropelamento puderam ser calculadas e extrapoladas para toda a malha viária. No meu post onde mostro que 475 milhões de animais silvestres devem ser atropelados por ano no Brasil você pode entender um pouco como as análises são realizadas. Clique aqui para acessar.

Como esperado, as maiores taxas de atropelamento ocorrem em pequenos animais com densidades populacionais elevadas e com maturidade precoce. Além disso os mamíferos e aves noturnos, com dietas herbívoras, também têm taxas de mortalidade mais elevadas. Nestes caso a mortalidade pode ser tão elevada quanto 12 ind./km/ano, para o melro (semelhante aos nosso sabiá-laranjeira). Os mapas abaixo mostram que as maiores taxas de atropelamento foram estimadas para a Alemanha, República Checa e Áustria. 

Estimativa de áreas com maior incidência de atropelamento de aves na Europa.

Estimativa de áreas com maior incidência de atropelamento de mamíferos na Europa.

Agora, ao se estimar as espécies mais ameaçadas pela perda de indivíduos e sua localização, os resultados foram muito distintos. O mapa abaixo mostra onde estão os locais mais críticos e identificam a Península Ibérica e Balcânica para as aves e a Espanha, Itália e alguns outros pontos para os mamíferos.

Proporção de espécies vulneráveis para aves e mamíferos (número de espécies dentro do percentil 20 dividido pelo número total de espécies)

Fazendo uma comparação do que afirmei sobre as capivaras, neste trabalho o pardal teve uma taxa elevada de mortalidade (2,7 ind./km/ano), mas está ranqueado entre as 5 espécies menos preocupantes em termos de conservação.

Mas afinal, como isso importa?

Volte ao início do texto, onde comento como normalmente são realizadas as análises de áreas de agregação. Veja que considerar apenas as questões de abundância de indivíduos mortos não faz sentido se o foco é mitigar impactos às espécies mais ameaçadas.

O órgãos ambientais, os empreendedores e sobretudo as consultorias devem ser capazes de identificar e propor ações efetivas. Contudo, reforço que propor ações requer a definição de perguntas ou objetivos de conservação a serem alcançados.

Se o termo de referência somente diz, faça monitoramento e indique áreas de agregação, 99% dos resultados será inútil para conservação, ou você não terá a menor ideia se realmente está protegendo as espécies certas. Sempre lembrando que, em muitos casos, os resultados obtidos nos relatórios implicam em elevados custos de investimentos em passagens e outras medidas de redução de atropelamento.

Sempre me pergunto porquê algumas empresas se satisfazem em cumprir os protocolos (termos de referência) quando, com o mesmo valor investido, podem obter resultados efetivos de conservação. Este resultados, além de mitigar, podem ser utilizados em ações de comunicação, ranking no IDA da ANTT, pontuação para certificações e assim por diante.

Leia o artigo completo. Roadkill risk and population vulnerability in European birds and mammals. Grilo et al. 2020 https://doi.org/10.1002/fee.2216

Onde obter mais informação?

Se você deseja saber mais sobre este ou outros assuntos relacionados a infraestrutura viária e biodiversidade sugiro busque outros posts ou mesmos os textos técnico/científicos que compartilho aqui no BAB.

Caso você tenha interesse em conhecer mais sobre métodos de estudos relacionados à infraestrutura viária e biodiversidade sugiro a leitura do meu livros. Saiba mais como adquirí-los clicando aqui

Infraestrutura Viária & Biodiversidade (2018)